Fernando Castro Florez Casa do ar 1995

Texto referente à exposição:
Pintura  1971-1994 - Fundacion Arte y Tecnologia, Telefoníca, Madrid, 1995

A casa constrói-se com o que lá encontramos (...)
o tempo a desfaz e o tempo a refaz;
A rima, o sol que nasce de eco em eco,
Ilumina-a: já não é espaço mas tempo.

Octavio Paz e Charles Tomlison: Air Born/Hijos del aire


Georges Duthuit descreveu os funerais de Matisse em Nice como um dia sombrio e desagradável. Quando o cortejo se organizava para conduzir o féretro até ao seu destino, surgiram sobre o cimo das montanhas de Cirniez os raios de sol que rasgaram a tela cinzenta do céu. Um último aviso do pintor, aquele fenómeno que durante toda a sua vida ele tinha tentado captar e reflectir: «era difícil não pensar, sem pecar por sentimental, unicamente porque era assim, que o sol tinha procurado, também ele, pagar o seu tributo de simpatia ao mais fiel dos seus servidores e que a sua aparição era como se nos estivesse a dizer: aqui estou para prestar testemunho da luz».  É essa uma das tarefas da arte moderna, transmitir uma alegria que abriu caminho através do crepúsculo, corresponder à claridade do mundo com um gesto da mão: uma arte de respirar em uníssono com os elementos que se encontram e que se oferecem.

A luz é protagonista nos quadros de Manuel Amado, entrando em quartos silenciosos, desocupados. Um arquitecto que se tem vindo a preocupar cada vez mais com o sentimento do habitat, com a forma essencial de gerar um espaço. Heidegger fez notar em A Arte e o Espaço que o vazio não é nada, nem sequer uma falta, pelo contrário, é o jogo no qual se fundam os lugares: «O criar espaço traz a liberdade, a abertura para um estabelecer-se e um morar do homem.» O sujeito não foi propriamente negado nas imagens de Amado, poder-se-ia pensar que é um observador, o ponto de vista no qual precisamente se situa o espectador: um olhar extasiado, abandonado ao paciente desenho dos raios do sol. Um habitar, portanto, que é completa serenidade, escuta dos dons do «dia conseguido».

Em 1987, Manuel Amado viu pela primeira vez quadros de Edward Hopper que o impressionaram fortemente. É fácil comparar estes dois criadores e, no entanto, há elementos que os distanciam significativamente. Hopper debruça-se sobre o conflito da cidade moderna com a natureza, nas suas conhecidas casas fantasmas próximas das linhas do comboio, mas sobretudo sobre um conflito que é o poço da angústia, a depressão de toda uma sociedade; nos quadros aparecem indivíduos sentados num passeio (Sunday) ou desolados entre o desejo e a reflexão (Excursion into Philosophy), procurando um pouco de companhia (Sunlight in a Cafeteria), com malas por desfazer num hotel qualquer. O mundo dobra-se sobre o spleen, o optimismo do progresso encontra um travão nestas imagens brilhantes da decepção. Amado, pelo seu lado, não mostra quase nunca esses seres anónimos, exangues; há um quadro estranho dentro da sua trajectória intitulado Carruagem de Noite, onde aparece, parcialmente, a figura de um jovem sentado num compartimento de um comboio solitário, todas as estações e vagões desengatados das locomotivas da série «Comboios», estações e apeadeiros estão condensados nesse indivíduo preparado para uma viagem na noite. Mas essa figura também faz lembrar um fantasma, uma projecção de uma mente que interiorizou a paixão do nómada.

É difícil reconhecer o estado de alma de Manuel Amado, mas o seu olhar sugere um distanciamento relativamente à solidão hopperiana onde a noite é algo mais do que uma sugestão. O pintor português foca a atenção sobre os momentos do dia (amanhecer, esplendor da tarde, crepúsculo) nos quais a luz transforma as coisas quotidianas em enigmas. Valery pensava que o que não é inefável não tem qualquer importância, há algo que nos empurra para lá do dizível, para outra forma de ver.

Os quartos são contemplados num momento em que estão prestes a explodir, o espaço protector transformou-se num espectáculo cheio de subtilezas, A posição do espectador, haveria que reconhecer, não reclama uma óptica concreta, mas sim a assunção do núcleo narrativo.

Nas casas pintadas por Amado as portas e as janelas estão abertas, o céu transparente não é perturbado por nenhuma nuvem, parece que todos se foram embora: o lugar repousa em si. «A pintura », escreveu Giorgio de Chirico, «enche-nos com a sua carga material e artesanal tanto como com os aspectos enigmaticos e perturbadores do mundo e da vida». Efectivamente algumas imagens permitem mostrar a vida tanto nos seus aspectos perturbadores e enigmáticos como nos líricos e reconfortantes, Os espaços fantasmagóricos e concretos da estética de Manuel Amado têm uma temperatura emocional muito alta: são agradecimentos pelo próprio facto de esse momento existir. O próprio Chirico assinalava que a visão da felicidade representa a presença do objecto desejado, «esta imagem é muito luminosa e não só projecta a sua luminosidade sobre as imagens que se lhe seguem como também sobre a realidade. Deste modo tudo o que ilumina a nossa felicidade nos parece belo e tudo se torna agradável ou, ao menos, suportável.»

Descubro neste criador um desafio silencioso, um movimento no limite da experiência, através das associações simbólicas nas quais se produz urna exposição paradoxal do numénico. A arte moderna conquistou o espaço em branco, esse jogo cromático em que a pintura mergulha no seu «fundamento sem fundamento», radicalizando as potencialidades da luz branca. Amado recolhe esse esplendor misterioso mas recupera a memória, recusa-se a ingressar numa abstracção completa por mais que na sua pintura o geométrico seja importante. Como escrevera poeticamente Octavio Paz no seu poema «Branco»: «a transparência é aquilo que fica», um fenómeno evanescente, um delta do desejo que afecta os objectos que nos rodeiam quotidianamente.

Pedro Tamen escreveu um poema em torno dos quadros da «Casa Sobre o Mar» de Amado: o pintor desoculta a luz, percorre «uma casa de ausência» (vazia e ocupada), purifica e reformula a estrutura do mundo. A ideia de que as obras de Amado são qualquer coisa como um Mondrian reconsiderado faz passar para primeiro plano a ideia do sublime, isto é, o sentimento de impotência ante a impossível redução a conceito de uma magnitude física ou matemática que nos ultrapassa. Mondrian encontrou no Mar do Norte a metáfora do infinito em que a natureza se põe em contacto com algo superior, que era, tal como disse Rosenblum, uma continuação da procura romântica de um lugar da natureza tão primitivo e afastado do homem e das suas obras que o «espectador se sentisse testemunha dos primeiros momentos de uma nova cosmogonia». Amado, face a Mondrian, não procura o transcendente num «mundo sem objectos», pelo contrário, para ele há um impulso terreno, um prazer de nomear que se reduz ao nosso horizonte, paradoxal sublimidade quotidiana, agradecimento e poetização do próprio habitar.
«Janelas do meu quarto», pode ler-se no poema «Tabacaria» de Fernando Pessoa, um texto que Amado põe em contacto com o seu tríptico pessoano. O quarto de Fernando Pessoa, o belo quarto com a janela aberta pintada em três momentos do dia, desde o amanhecer até à noite. Essa sequência confirma que Manuel Amado é um pintor do tempo, nas escadas e nos corredores, observando uma cadeira de diferentes ângulos, reparando nos detalhes de uma barraca de praia, condensa os instantes, entretece com os raios do sol a sua particular emoção. Geneviève Moll assinalou que os quadros de Amado estariam numa mesma «constelação» que os haikus de Bashô. O haiku é a consciência da fragilidade e da precariedade da existência, a consciência daquele que se sabe suspenso entre um abismo e outro: revelação dos instantes tensos, transparentes. As visões de Amado encontram-se sob o signo lírico: vivacidade, presença do irrepetível.

As ruas, as arcadas, as fachadas, a praia dialogam com o corredor interior, a poltrona, as janelas, a cortina agitada pelo vento. Amado pinta o ar, os espaços intercalares, dá testemunho da sua presença e, sobretudo, do seu calar emocionado. Nos seus quadros repetem-se os umbrais (portas e janelas), o olhar detém-se um momento antes de entrar ou espreitar; é essa a fronteira que permite ver, é uma configuração que agora se volta circularmente para nós. Nessa fronteira «desenham» tanto a luz como a sombra. Tanizaki descreveu as maravilhas do toko no ma, o lugar em que a arquitectura se converte em ritual e jogo de sombra e luz: «o ar nesses lugares encerra uma espessura de silêncio, na obscuridade reina uma serenidade eternamente inalterável». Sombras que não remetem para a tragédia mas sim para a beleza, retêm o olhar num lugar preciso. Tal como Heidegger advertira, a serenidade é um retorno à morada, ou seja, a essa essência em que repousam as coisas. Pintar o sentimento de estar aqui, a aura do habitar quando estamos, em aparência, ausentes.

O testemunho da luz e da sombra chega ao coração da casa num quadro curioso, "Quarto Interior”: já é dia claro e alguém permanece dormindo na cama, de costas voltadas para os raios solares, poderia ser o mesmo jovem que estava sentado no compartimento do comboio: da viagem ao sonho. No interior acumulam-se as experiencias e os desejos, na espera deparou-se um corpo inconsciente, uma respiração surpreendida. Imagens que são enigmáticas, talvez pela sua claridade extrema: a curva da estrada, a vida com a porta entreaberta oferece apenas o espaço paciente da esperança.

Manuel Amado representa o instante em que o interior e o exterior se fundem, quando escutamos o eco dos passos num corredor cortado pela luz e pela sombra.