Fernando António Baptista Pereira A ekphrasis revisitada 2000

Texto em torno de «A Grande Cheia» (1996), pintura de Manuel Amado, e de O Jogo dos Reflexos (1997), poemas de Nuno Júdice

Circunstância e História

Manuel Amado realizou, no ano de 1996, a partir da impressão causada pelas cheias que assolaram Portugal no inverno de 95-96 depois de alguns anos de angustiante seca, uma série de treze quadros que intitulou «A Grande Cheia», conjunto que permaneceria inédito até à recente exposição (Janeiro de 2001), no Centro Cultural Gulbenkian, em Paris. Ao longo do mês de Março de 1997, Nuno Júdice, depois de ver as pinturas e alvoroçado pela novidade, como diria Clarice Lispector, escreveu um ciclo de treze poemas a partir dos quadros de Manuel Amado, tendo-lhe dado por título O Jogo dos Reflexos, livro que agora se edita, associando os poemas às reproduções fotográficas dos quadros.

Este fecundo jogo de sedução e contaminação entre a Palavra e a Imagem, ou, se quisermos, ainda mais latamente, entre a Pintura e a Escrita, inscreve-se numa longa tradição que remonta à Pré-História, ou seja, à História antes da História convencionalizada pela omnipresença da Escrita enquanto instância de comunicação e memória.

Durante milénios, foi a Pintura, na sua variante originária, a rupestre, que, além de ter criado o primeiro espaço simbólico da Humanidade, a caverna pintada, gerou no seu seio, num longo caminho de progressiva mas descontínua abstracção e geometrização, as figuras que se transformariam nos sinais da própria Escrita.

Cumprida essa como que sua primeira missão – a de dotar os Homens de um sistema eficaz e duradouro de comunicação – a Pintura renasceu na figuração e na representação. Sofreu então a emulação da Poesia, criando a Antiguidade Clássica e as suas derivações modernas um sistema retórico de equivalências e mútuas compensações que ficaria consagrado na feliz fórmula Ut Pictura Poesis. Lembremos, a título de exemplo, que, de acordo com a teoria, se a Pintura é uma Poesia muda e a Poesia uma Pintura falante, a Poesia não pode beneficiar da mais valia emotiva das formas e das cores com que o Pintor reinventa as referências. Mas, curiosamente, foi graças à prática da ekphrasis – a descrição poética ou narrativa, quase sempre sob a forma de elogio, de composições pictóricas (ou de outras obras de arte), como os quadros de grande verosimilhança do mítico Apeles, os famosos muros pintados com a História de Tróia da Eneida ou o escudo de Aquiles da Ilíada – que muitas das obras-primas dos mestres da Antiguidade sobreviveram numa memória difusa, puramente literária, em que a imagem directa está ausente...

Outros caminhos de associação/contaminação entre as duas práticas foram encetados na Idade Média, com interessantes prolongamentos até aos nossos dias. Por um lado, a homologia entre os signos visuais e a escrita enquanto materialidade e processualidade, quer como epifania do Mistério no registo qualificado da Palavra de Deus, quer como automatismo do gesto criador, percurso brilhantemente encetado na iluminura irlandesa que atingiu o seu akhmé na contemporaneidade com as correntes da Poesia Concreta e Visual. Por outro lado, o uso da Imagem como ilustração  ou comentário da Palavra, dando origem a um género com notabilíssimos cultores até aos nossos dias, de Botticelli a Picasso.

A codificação albertiana do quadro-janela do Renascimento, abrindo um longo ciclo de cinco séculos de reinado quase absoluto das diferentes modalidades da representação, que as várias correntes do modernismo do século XX questionariam profundamente, contribuiu decisivamente para a revalorização não só da vertente ilustrativa como do papel da ekphrasis enquanto discurso literário sobre as imagens e também ponto de partida, talvez involuntário, quer de um memorialismo fundado na biografia dos artistas, quer da própria crítica das imagens, origem de uma Filosofia e de uma História da Arte.

Em resposta à capacidade de recriação oferecida pela Imagem face ao texto literário, a Literatura não se limitou a descrever imagens existentes ou perdidas e ficcionou pinturas, desde as célebres bandeiras de seda das naus de Vasco da Gama nas quais Camões, no Canto VIII de Os Lusíadas, poeticamente imaginou quadros heróicos da História de Portugal «descritos» por Paulo da Gama ao Catual de Calecute, até ao espantoso retrato de Dorian Gray imaginado por Oscar Wilde, que envelhece em vez do retratado.

Os poemas de Nuno Júdice, elaborados a partir das pinturas de Manuel Amado, não se limitam a um mero mas indubitavelmente saudável  regresso à ekphrasis de matriz clássica, ainda que temperado por décadas de uma modernidade que sempre interrogou os limites representativos da linguagem exaltando a consciência da sua processualidade. 

A meu ver, o ciclo neo-romântico de Nuno Júdice reformula o problema original da ekphrasis, pois nasce, muito apropriadamente, do pessoano desassossego produzido no sujeito poético pelas pinturas (de longínqua referência neo-clássica) de Manuel Amado para procurar traduzir numa outra língua, reinventando-o, recentrando-o e amplificando-o numa lírica dominada pelo apaixonante binómio morte/renascimento sugerido pela própria série pictórica, o insólito mundo das imagens, desertado pela figura humana (diz o Poeta: «Sonho / que uma vida possa existir do outro lado / dos batentes», poema «Perspectiva») mas marcado pelo excesso, prenhe de sentidos ambivalentes, do elemento água e, também, pela omnipresença algo voyeurística (como já foi notado) do pintor-sujeito que vê e re-presenta. 

O Poeta torna, assim, explícita a ausência aparente do Pintor nas suas telas ao metamorfoseá-lo nos seus poemas em sujeito de uma enunciação que, num deslizar permanente, transforma o ver e o sentir no acto de escrever e a escrita numa forma superior de imaginar, recordar e até amar:

«... Perdi um estremecer 
de marés quando atravessei o pátio 
da tua voz. Apanhei as palavras, uma a uma,
como folhas arrastadas na corrente vaga
do ocaso. Estendi-as na mesa da manhã,
abertas, para que o primeiro sol
as secasse. Com o calor, voavam
até aos teus lábios: pediam-te que os abrisses,
que recolhesses cada uma das suas sílabas, 
que bebesses o licor ácido das suas
consoantes. Fora dos lábios, as palavras
morrem com um estertor de musgo. Corri
atrás delas, com uma ânsia de coleccionador 
de borboletas. E vi-as fugirem-me por entre os dedos;
limpei um resto de sons na espuma do canto.»
(poema «Busto»)



Espaço e Tempo

O mundo habitado pela harmonia de formas e sentimentos que a pintura de Manuel Amado logrou inventar ao longo de décadas, numa estética original que se manifesta através de um autêntico esplendor do ver, surge, nesta série a vários títulos única e reveladora, definitivamente transfigurado e mesmo drasticamente perturbado pelo excesso do elemento figurativo água que lhe subverteu alguns dos valores espácio-temporais fundamentais.

Numa pintura em que está sempre presente a formação arquitectónica do Pintor, pela rigorosa definição do espaço, pela sábia articulação entre interior e exterior, enfim, pela magistral manipulação da luz e das sombras, tudo, ou quase tudo, muda quando o motivo da massa líquida se torna dominante, mesmo quando não passa de um mero plano espelhado de reflexos. O alto e o baixo quase se equivalem, como se se tratasse de «um naufrágio de horizontes» (poema «Perspectiva»), perturbam-se as referências equilibrantes dos grandes eixos estruturadores do espaço desde os Egípcios – a vertical e a horizontal –, desencadeia-se a duplicação das imagens num efeito especular, turvo é certo mas indiscutivelmente eficaz.

A poderosa luz diurna e intensamente solar a que a pintura de Manuel Amado nos tinha habituado também mudou: a sofisticada luz destes quadros, a vários níveis reflectida, aparece-nos esfriada pela omnipresença das superfícies líquidas («É onde a luz / termina: reflexos exaustos numa ânsia / de sombra», poema «A Declinação da Perspectiva»), graduando-se em fascinantes matizes, num exercício virtuosístico de representação/recriação.

Mas foi, porventura, na notação do Tempo que as mudanças mais radicais se registaram. Na verdade, a pintura de Manuel Amado aspira, sobretudo ao nível do enunciado, a uma certa intemporalidade, que lhe advém do sacrifício do contingente (tal como o Poeta recusa «os que se perdem nos átrios / circunstanciais do poema», poema «Princípio») em favor do absolutamente necessário, daí o seu realismo profundamente idealizado, que alguém não hesitou em considerar, com alguma justeza, abstracto.

Já houve, num caso ou noutro de séries pictóricas anteriores, claras concessões a um certo gosto pela captação de instantes, num efeito retórico mais próximo de uma estratégia de tipo naturalista (como aconteceu com o Barroco, com o Impressionismo, mas também com a pintura de um Lucian Freud e com a obra mais recente de Paula Rêgo) do que do realismo em que preferencialmente se define (cuja matriz remonta a Jan Van Eyck, renasce nos vários neoclassicismos até chegar a David Hockney ou à última fase do seu compatriota e contemporâneo Jorge Pinheiro), mas nada se pode comparar ao equilíbrio temporal instável presente nestas pinturas.

Não será, pois, por acaso que um dos conceitos mais recorrentes no ciclo poético de Nuno Júdice é, precisamente, o de «instante»: «Tudo o que me disseste / coube nesse preciso instante,  / que o tempo cobriu com o/ peso das suas águas», poema «Revelação», ou «Gota / a gota, a sua vida enche o copo / do instante», poema «Voracidade», ou, ainda, «No instante inverso, a noite fica / sem forças para o musgo.», poema «Ísis».

A água invadiu todos os lugares e transfigurou os espaços, retirando-os da imobilidade telúrica em que permaneciam e instalando o frémito da mudança e da transformação («Sob um mosto de nuvens a fermentação / transforma o ser», poema «Voracidade»), seja a que deriva do adivinhado trabalho lento do apodrecimento da matéria pelo excesso de humidade («... As algas proliferam na sua / textura, bebendo o último brilho / da janela», poema «Ângulo»), seja a que se manifesta na fluidez e reverberação das superfícies, falsos chãos sob os quais se esconde a morte de tudo o que é orgânico («Uma destilação de treva: a sua luz / negra caindo sobre o peso de outras luzes, / reflexo morto de antigos universos, / deixando atrás o eco que não volta», poema «Vórtice») mas também o anúncio de uma inelutável Primavera («.. .nos botões que se multiplicam por entre / as folhas, um futuro desabrochar de cores», poema «Lição de Botânica»).

Em síntese e num plano temático global, a série pictórica mostra-nos, num enquadramento de uma sublime serenidade («Invoco a porta do hemisfério / diurno. Invoco a lógica de explicações / solares, a sede de uma retórica sublime...», poema «Chegada»), a sinfónica magnitude da devastação: a desolação e a morte parecem emergir em todas as composições, envolvendo os espaços, rondando e penetrando as habitações («Que vulto / me espera por trás dos vidros? Nenhuma voz / me indica o caminho.», poema «Iniciação»), mas também, finda a tempestade e instalada a bonança, um renascer da vida teima em anunciar-se aqui e além («Um pássaro saltou dos ramos da estrofe.», poema «Jogo de Reflexos»).



As pinturas / os poemas

Como «ler» as pinturas e os poemas? Destituída de preocupações narrativas, a série pictórica, pré-existente ao ciclo de poemas, apresenta uma sequência aleatória que mudará em diversas apresentações museológicas, de acordo com diferentes critérios, ainda que, num esforço de inquirição à memória da execução, pudéssemos apurar – se isso fosse relevante – a ordem pela qual o pintor realizou as distintas pinturas. Sabemos que Manuel Amado principiou a série pelos dois quadros a que se reportam os dois últimos poemas do ciclo e foi executando as pinturas uma a uma ou por vezes aos pares, sem que antes do final do conjunto tivesse existido qualquer ordem pré-estabelecida.

Atendendo às datas dos poemas, apura-se claramente que, embora escritos no intervalo de um mês, não o foram pela ordem (homologamente não-narrativa) que o ciclo finalmente consagra. Porque se trata da edição de um livro de poemas, a ordem pela qual se propõe a leitura sequencial das pinturas não pode deixar de ser aquela que é imposta pela organização final do ciclo poético. É uma ironia do destino ou uma interessante consequência desta nova ekphrasis proposta por Nuno Júdice que, tendo as pinturas sido concebidas independentemente do esforço de imaginação poética sobre elas exercido a posteriori, a sua leitura enquanto sequência acabe por ser definida por essa mesma imaginação poética, reforçando a interdependência simbólica entre as duas séries, que só foi desencadeada precisamente pela ekphrasis.

Se as pinturas podem ser vistas, «lidas» e fruídas sem o concurso dos poemas, o ciclo poético só ganha pleno sentido sabendo-o concebido a partir da série pictórica e tendo esta de algum modo presente, mesmo que seja só pela fotografia, sem a «aura» dos originais... Mas as pinturas ganharam, entretanto, uma mais valia simbólica ao terem motivado o ciclo poético, que lhes amplificou e enriqueceu o universo referencial, pelo que, com ele, se tornam espantosamente «falantes», crescendo em sedução perante o espectador e o leitor.