Bernardo Pinto de Almeida A Luz que desenha um jardim secreto 2000

Texto referente à exposição:
A Casa de Mateus e O Meu Jardim - Galeria dos Coimbras, Braga (2000)

Toda a pintura é memória. Não memória disto ou daquilo - que é apenas, quando se fixa em algo, o domínio do lembrar, com a precisão de detalhe que tem, por exemplo, a fotografia - mas a expressão, talvez a mais alta, da própria forma da memória.

É por isso que pintar é, sempre, interpretar.

A memória não é, em si mesma, precisa. Ela é como um continente difuso, vasto, vário. Ela sobrepõe, recorta, apaga, induz, aperfeiçoa, sinaliza, inscreve e reinscreve.

A memória não corresponde à ordem da natureza, mas participa, antes, da ordem da realidade ou da cultura. Da realidade, ou seja, daquilo que é já construção do humano, interpretação, isto é, forma de perceber a natureza.

Digo-o agora de outro modo: toda a pintura é memória, ao mesmo tempo de si mesma, da sua história, dos seus gestos, das suas visões, das formas recorrentes que tomou, mas sobreposta, em cada pintor que de facto o é, ou acrescentada, de uma nova memória, que é resultado da soma entrecruzada de si mesma com toda a memória da pintura. Por isso também é que nunca acaba o trabalho da pintura.

Mas é também por essa razão que em pintura - como, de resto, em literatura – nunca se inventa propriamente nada, mas antes se acrescenta, se rasura, se corrige, de modo a que se possam reorganizar os dados essenciais da percepção. Justamente porque é memória, a pintura mobiliza, conjugadamente, as suas três ordens fundadoras: a da sensação, a da percepção e a do afecto.
O que Manuel Amado pinta, então, é a memória. Não tanto, volto a sublinhá-lo, a memória de alguma coisa precisa, mas a sua relação mais íntima e fecunda com a memória. Mas a memória é o território da transfiguração e, assim, o que nos seus quadros vemos é a visão de uma realidade transfigurada. Por isso já se falou, a seu respeito, de Hopper, de pintura metafísica ou de Magritte. E todos três lá cabem também, e porque não, como outros tantos fios possíveis de memória, sua e da pintura, convergindo como linhas invisíveis para o seu jardim secreto.

Nestes quadros, como em quase todos os do Manuel, o tempo como que se suspende, ou se congela - é sempre uma estação solar, é sempre de manhã, é sempre dia - , e interiores e exteriores equivalem-se como palcos de aparentados valores lumínicos.

A memória do Manuel é, antes de tudo mais, uma memória da luz.

Não sei se alguém já o disse, mas eu penso-o, a pintura de Manuel Amado é, na sua raiz, no seu coração mais íntimo, abstracta. Mesmo quando mais vivamente representa, e sobretudo quanto mais veemente ela é na sua forma de representar, ela é abstracta. Isto é, matematizável, redutível a linhas de luz que nada significam senão o caprichoso diagrama desenhado pelos seus vivos contrastes. Como abstractas nos são, bem o sabemos de íntimo conhecimento vital, certas tardes de sol muito a pique, em que a própria luz parece dissolver os contornos e erguer por cima deles uma difusa aura de sufocação.

Esse é, talvez, o seu enigma maior, a razão mais profunda da sua atracção. O espaço, completamente pessoal do pintor, onde, por isso mesmo, não se fixa uma identificação precisa - olha, eu estive aqui - mas em que, pelo contrário, se pode apenas projectar um desejo: eu gostaria de ali poder pertencer por um momento.

Jardim ou interior, portal aberto ou pátio generoso, portão ou janela, muro ou mesa, cada espaço ou cada objecto na pintura de Manuel Amado serve o propósito concreto de dar a ver isto: que toda a realidade é enigmática, espectral, e que penetrá-la no cerne desse enigma, não é dissolver-lhe o mistério trazendo-o de volta para o limiar da razão, mas restituir-lhe sempre o seu valor de indizível, de indefinível, aceitando apenas que o próprio do enigma é perpetuar-se enquanto tal, sem por um momento ceder à tentação de revelar a sua mais oculta dimensão.

Por isso também é que, permanecendo embora próxima dos valores arquitectónicos da formação do pintor, esta pintura não cede nunca espaço ou configuração a uma matriz naturalista ou, sequer, realista.

Pelo contrário, sempre nela se acentuam valores de irrealidade e de surpresa, por muito figurativos que nos possam parecer motivos ou lugares.

É precisamente esse devir-irreal de lugares e de motivos, essa passagem subtil de uma ordem figurativa para aquilo que Lyotard chamou uma ordem figural, esse deslizar do reconhecível da paisagem para o irreconhecível do jardim, o modo como o tempo, congelando-se vai cedendo progressivamente a uma pura espacialidade ou esse progressivo movimento de transfiguração em que se aloja o segredo da pintura de Manuel Amado, aquilo que a torna abstracta.

E ao torná-la abstracta, quero dizer, secreta, esse movimento interior que a percorre permite que nela se desenvolva a sua tematização mais fecunda, que é a da infância.

O tempo que Manuel Amado suspende é, por sua natureza, o tempo histórico da sucessão dos presentes. Na sua pintura solar, cheia de uma luz que transfigura, o que se projecta é o jardim secreto e mítico da infância.

Não só da sua infância, a dele - do pintor destes jardins e destas casas, destes muros caiados onde se projectam, serenas, as sombras do arvoredo, desses pátios luminosos que se abrem para exteriores banhados por uma luz de manhã inefável, - mas de todas as infâncias.

A infância compreendida como um espaço mítico e para sempre perdido, motor profundo que age em todo o trabalho da memória e, através dela, no real.

Porque toda a memória é sempre, do fundo de si mesma, grave tributo à infância, sua fonte primeira e sua origem. De onde também que toda esta pintura, mesmo se solar e luminosa em cada espaço que descerra, não deixe de transparecer um certo rasto, inevitável, de melancolia.

Este, creio, é o motivo mais invisível, e no entanto o mais presente como força interna, da pintura do Manuel Amado. Aquele que, aos poucos, se descerra dessas arquitecturas sólidas que se diriam para sempre abandonadas da presença de todo o vestígio humano, e no entanto irrepreensivelmente arrumadas como se criados ou jardineiros invisíveis as cuidassem ao mais ínfimo detalhe.

Tudo ficou, para sempre, banhado daquela luz sem mácula da memória da infância.

E os adultos, se os houve, foram instrumentos passageiros desse conhecimento fértil do mundo. Seus habitantes marginais, pois não foi sobre eles que se projectou o grande olhar inquiridor da infância, guardado antes para a observação atenta dos infinitos jogos de luz e de sombra, das misteriosas arquitecturas, dos muros brancos onde a luz, a pique, desenhou figuras que quedaram para sempre imóveis.

Nesse ecrã transcendental que toda a infância institui, fixaram-se intocados, estáticos e silenciosos, lugares tão cinematográficos mas ao mesmo tempo tão suspensos como a Marienbad de Alain Resnais, interiores tão densos como os de Fanny e Alexander de Bergmann, ou muros tão irrepreensivelmente brancos e caiados como os de Amarcord de Fellini.

No cinema de Manuel Amado, nesse seu interminável découpage da memória e da infância, há uma luz que desenha com rigor cada contorno, cada esquina, cada renque de buxo, cada aresta, cada recorte de janela e cada sombra. A mesma luz que, caprichosa, evolui depois, serenamente, da janela para o chão onde faz brilhar os encerados e onde, por sua vez, abre novas quadrículas de luz que diafanamente iluminam os objectos circundantes resgatando-os da penumbra.

É essa luz que desenha, nas relações de tudo, a arquitectura invisível que organiza, com meticuloso cuidado, o contorno interior do seu jardim secreto.