Nuno Júdice A Representação em Pintura 2010

Texto referente à exposição:
Encenações - Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, 2010
Irei partir do título do ensaio de Jacques Derrida «A verdade em pintura» para encontrar uma demonstração dessa verdade na representação que dela faz Manuel Amado. Na série de quadros que nos são apresentados, o pintor faz uma dupla citação: uma citação das suas séries relativas a cidades, a jardins, a praias, a interiores; e uma citação das figuras recortadas da sua série teatral. Não se trata de uma colagem nem de uma sobreposição mas de um encaixamento, no sentido das mots-valises do Futurismo e, depois, do Surrealismo, em que duas realidades se interpenetram sem se anularem criando uma terceira realidade, mais complexa porque abrindo a visão a um nível superior ao que estamos a ver. A verdade, retomando a referência a Derrida, não é apenas uma afirmação mas também, e sobretudo, uma interrogação, como a que surge no Evangelho: O que é a verdade? A resposta será, antes de outra coisa, a de que a verdade é a interrogação sobre o que pensamos ser a verdade.

O quadro para Manuel Amado é o objecto dessa interrogação. O seu ponto de partida é o mundo que o olhar percorre; mas ao ser captado, o que vemos não é esse suposto real que se sabe efémero a partir do instante em que o tempo do olhar o percorre – e nesse tempo encontra-se o do próprio homem, com a sua natureza precária no plano individual, para não falar do plano das próprias civilizações que Valéry declarou serem mortais. Isto vem já do Impressionismo que soube adaptar esse objecto ao circunstancialismo de um tempo que passa pelas diversas luminosidades do dia, ou pelas mudanças que as estações nele provocam. Manuel Amado, no entanto, não ignora nem esconde a mudança que a fotografia veio impor na nossa relação com a imagem, e no seu modo de produção, multiplicando e simultaneamente desvalorizando esse objecto. O que ele faz, então, é conferir ao olhar que perspectiva um papel de sujeito que interfere com cada peça da cena figurada. Temos então uma subversão do próprio material do quadro que, como se sabe, em Manuel Amado raramente apresenta figuras humanas, limitando-se ao que se poderia designar por cenários, naturezas mortas, paisagens. Ao introduzir as figuras recortadas como personagens em jogo com esse fundo, o que vai suceder é um diálogo que transporta a pintura para o plano da «representação» cénica.

Se a representação tem início à nossa frente, isso deve-se por outro lado à presença activa de quem maneja os cordéis que, no caso do quadro, são o pincel, as formas, as cores, o desenho que está por trás do que nós vemos. Tudo desaparece perante a imagem que surge perante nós; mas esta não é de forma alguma uma ilusão, nem um fantasma. Na sua imobilidade, move-se; e esses cartões recortados ganham o valor de um meta-quadro, como se pertencessem a essa esfera do comentário ou da crítica que introduz a dúvida no plano referencial da ilusão realista, fotográfica, que é remetida para um nível de fundo, de perspectiva. Trata-se, portanto, de uma dissociação que faz nascer uma temporalidade no espaço do quadro, um antes – esse fundo que surge como citação da obra anterior do pintor – e um depois, que é dado pela introdução do recorte que faz nascer essa cena teatral. E é esta a grande revolução introduzida por esta nova série: uma arte que situa no futuro a sua leitura, nesse pós-quadro em que o espaço cénico se irá animar, e o desfecho do que, no presente, se pode identificar com o abrir do pano.

Poderíamos dizer que aquilo que Manuel Amado nos apresenta é o enigma que não está apenas ligado à verdade, e à interrogação que dela nasce, mas a esta sucessão de planos temporais e espaciais que abrem esse espaço narrativo que, de certo modo, inverte a situação da obra fundadora da modernidade: as Meninas de Velázquez. Ao contrário desse quadro em que tudo está de frente para nós, até esse último plano, no recorte da porta, onde se encontra um homem recortado contra o fundo, como se o espectador fosse o espelho em que Velázquez, de frente para nós, segurando a paleta e o pincel em frente da tela onde supostamente estará a pintar o seu auto-retrato, estará reflectido, Manuel Amado, na maior parte destas obras, reocupa o lugar do pintor, e onde deveria estar o espelho que nos permitiria ver a parte da frente da figura recortada, coloca um fundo de quadro em que reconhecemos essa sua obra anterior, como nos casos de Menina à Janela, A Sala Vazia, Na Praia, A Sentinela, entre muitos outros. No lugar do pintor ele coloca a pintura; e o espectador acaba por ficar no primeiro plano, imediatamente antes dessas figuras de que ele vê os suportes, como se fosse o próprio olhar do espectador a ter de assegurar a sua estabilidade e a sua verticalidade, obrigando, de certo modo, esse olhar de fora a intervir para preencher o que falta do fundo do quadro, o que vai implicar o próprio espectador no acto criativo da pintura.

Manuel Amado retira o centro do olhar de dentro do quadro, e vai fazer com que surja um ponto, como que um buraco negro, que recupera essa tensão exterior ao que se suporia imutável e eterno – a imagem do quadro, na sua beleza aparentemente estática e definitiva. Esse centro localiza-se no ponto em que, nas Meninas, está o pintor: e se o que o Velázquez, que se auto-representa no seu quadro, está a olhar são as costas das figuras reais, o espectador destes quadros, ao ver de costas essas figuras, encontra-se projectado no lugar do próprio pintor, esvaziando esse lugar. Deste modo o que Manuel Amado vem colocar é precisamente a questão do espaço pictórico como representação de uma situação criativa, através do deslocamento do olhar do pintor para o espectador não num plano de identificação mas antes reflexivo, forçando a essa atitude de interrogação que nos conduz ao que é a verdade não só em pintura, como faz Derrida, mas no próprio acto de pintar.

O que aqui está também demonstrado é que não existe inutilidade no modo como se capta o real. A partir do momento em que o espectador se sente implicado, é consigo próprio, com o seu destino, que a imagem joga. À conclusão de que o olhar não é inocente, e de que existe uma consequência em cada opção que o perspectiva, abrindo diversos ângulos de abordagem e de descoberta do real, ao quadro, entendido como o limite da representação, ou o delimitar de um espaço a que ele acaba por pertencer, segue-se um novo início que diz respeito à razão por que estamos aqui, de costas para estas figuras que nos captam o olhar e o rosto, como se fôssemos o homem que, no quadro de Magritte, se vê de costas ao espelho. A ideia de olhar o real – pois é disso que se trata – é assim projectada no quadro nessa série de espelhos paralelos, repetindo-se até um infinito que se pode associar à série e à variação, na conotação musical das duas palavras. Ruptura da harmonia, por um lado; mas redundância onde se inscreve a descoberta do novo no mesmo, como na música barroca.

Introduziria aqui o motivo da pós-modernidade apenas no sentido em que esta pintura recupera uma história da representação em que a similitude já não tem a ver com a mimesis aristotélica. Aquilo que por vezes pode surgir como espontâneo modo de captar, de imitar, o real do quadro, é denunciado por esse elemento que se pode designar umas vezes por excessivo, mas sobretudo por transcendente, ou seja, remetendo para uma dimensão que diz respeito a um pensamento da imagem, daí avançando para um espaço abstracto que corresponde ao que não se vê da figura, ao outro lado que é sustentado pelos apoios nas suas costas, que nos surgem como a estrutura que sustenta o equilíbrio do todo. É esta a razão por que esta pintura nada tem de ingénua, o que advém do facto de cada traço corresponder a um pensamento subjacente, a uma ideia que envolve os fragmentos de um todo numa busca de totalidade que nos faz pensar na utopia, e nos leva uma vez mais para o futuro – o tempo do quadro.

Representação, real, utopia: são estes os três eixos que sustentam o edifício do olhar. Não o podemos conceber, na sua integralidade, sem uma técnica que permite o que já referi como a reprodutibilidade da imagem feita não do modo mecânico que Walter Benjamin associou à fotografia, mas na forma sequencial que se liga quer a variantes de luz quer a projecções de sombra. Não se procure aí, porém, uma lógica que decorreria da existência de um ponto de luz preciso. Trata-se, muitas vezes, de uma opção pelo aleatório que nos afasta uma vez mais do que seria um jogo lógico; e uma vez mais à rejeição da mimese soma-se a rejeição dessa lógica que nos situaria no campo clássico. Essa outra delimitação de campo reenvia-nos para um mundo de luz e sombra em que o absurdo do homem na caverna de Platão se escreve; e é com efeito uma frase construída a partir dessa gramática de contrastes positivo e negativo, diurno e nocturno, que vai contando a construção desse espaço habitado por vazios que vão recebendo a figuração desses recortes que identificamos pela silhueta humana ou animal, e também de objectos como os barcos que indicam um além inatingível.

Se a presença do recorte no quadro vai criar, por um lado, o efeito de fantasma, associado à morte, como sucede em Os Três Santos ou em O Recreio, mas igualmente criando um espaço projectivo do olhar do espectador, como se a tela fosse o ecrã de um imaginário errante, por outro lado a sua função é igualmente dinâmica através da chamada de atenção para os limites do quadro, definindo-se em relação a essa moldura como um ponto de fixação do olhar que vai determinar o modo como se efectua a dispositio retórica de cada elemento. Isso torna-se evidente por exemplo em É Proibido Passar onde encontramos uma perfeita simetria da porta que nos cria a imagem de uma ordem do mundo que decorre da citação óbvia do homem vitruviano de Leonardo da Vinci, com a sua divina proporção. A imagem surge dotada de um dispositivo comunicativo do seu contexto e da sua tradição, indiciando essa acumulação de referentes ao mesmo tempo que torna evidente a afirmação clássica de uma estética que, no momento seguinte, é subvertida através de pequenos sinais do cenário que rompem essa simetria.

E é neste ponto que Manuel Amado se afasta de um hiper-realismo com que poderia haver a tentação de o identificar. Não existe nesta pintura nem o excesso nem o cúmulo de detalhes que corresponde a uma afirmação por vezes verborreica da imagem. Se alguma associação cultural se pudesse fazer, referiria a poesia de Frei Agostinho da Cruz não tanto pela natural associação a alguns cenários da serra da Arrábida que ambos partilham mas acima de tudo por essa recuperação do génio bucólico, na sua definição precisa de género ligado a uma idade do homem em que os quatro elementos se encontravam no centro do seu universo. Utopia regressiva, poderia dizer-se; mas no momento actual o inverso é mais correcto, dadas as circunstâncias do contexto ecológico em que vivemos, actualizando numa leitura sem dúvida não necessária, no plano estético, esse futuro para que Manuel Amado remete a leitura dos seus quadros. Não é no entanto no aspecto de uma qualquer leitura imediatista que a sua pintura se pode definir. Questionamento do ser, questionamento do olhar, e acima de tudo essa interrogação sobre a verdade em pintura, que remete para a representação do real como encenação, é o tema e a matéria destes quadros que, finalmente, nos poderão surgir como encenações da sua própria verdade.