Eduardo Prado Coelho1985

Texto referente à exposição:
Óleos de Manuel Amado - Galeria de S. Mamede, Lisboa, 1985
Caminhas lentamente pelo interior destes quadros, e que vês?

Lugares que enquadram outros lugares que enquadram outros lugares, numa interminável sequência de molduras vazias. E, no entanto, este vazio tão silenciosamente transmitido de tela para tela não consegue deixar de ser ainda um murmúrio, uma curva, um pressentimento.

A esta pintura de Manuel Amado não se poderá censurar uma escassez de referências. Tudo está lá, monotonamente indicado, quer nas formas, quer nas palavras humildes de cada título: casas, janelas, toalhas, objectos abandonados, árvores, recantos. Nem sequer podemos dizer que o autor se apagou. Embora convertido num artesão atento, ele ali está também, empenhado em restituir, na mais obstinada das fidelidades, essas mesmas formas e palavras.

O que aqui nos inquieta e nos perturba é talvez outra coisa. Como se de Manuel Amado tivesse conseguido pintar, não propriamente as coisas na sua mudez cativante, mas o facto de nós sermos o destinatário delas sem para elas haver um destinador. Aqui se suspende a relação triádica de um objecto que passa de uma primeira mão para outra mão. Manuel Amado consegue insinuar-nos que não há primeira mão – há apenas a harmonia serena que ela nos legou. Este saber é difícil de saber: é melhor deixá-lo aproximar-se pela pintura.

Quando o espaço nos emociona, e aí nos deixamos enredar, é porque nos apercebemos de que alguém nos precedeu na visão que dele vamos construindo. Aprendemos no cinema: entramos num quarto, e sentimos medo, porque alguém nos olha no vazio desse quarto. O outro é a instância em que esse espaço se organiza, é a luz que o empolga. Chegamos sempre depois. A emoção (medo, desejo, cólera, alegria) é a modulação desse atraso, a aprendizagem comovida de que nada o poderá eliminar.

A pintura de Manuel Amado não segue esse caminho. Poderemos suspeitar que um pouco de infância passou por aqueles lugares, mas não o suficiente para dar corpo à nostalgia. É certo que o curso do dia se vai declinando pela repartição entre a luz e as sombras, mas não o bastante para traçar uma respiração ou um ciclo de vida. E nem mesmo podemos dizer, à maneira dos medievais, que o visível é aqui passagem para o invisível, ou acesso à invisibilidade do invisível. Porque tudo é visível, absolutamente visível, e não há outra harmonia para além dessa. A pintura de Manuel amado confronta-nos com este desequilíbrio irredutível: ninguém nos precedeu nisto que vemos, e, no entanto não conseguimos chegar a ver sem nos apoiarmos na ideia de que alguém viu antes de nós. Ela é o vazio do Outro e a exigência do Outro, mas um vazio sem drama e uma exigência sem ênfase. Dessas poses de batalha apenas resta o trabalho de pintar. E repetir, de pintura em pintura, esse estranho desequilíbrio rasurado.

Manuel Amado pinta, como é óbvio, não o espaço, mas o silêncio do espaço, mas o tempo, ou melhor: o tempo fora do tempo. Quando Cézanne, ao retratar Mme. Cézanne desarticula a relação entre a linha do tapete e a linha do corpo, o que ele faz, segundo Merleau-Ponty, é pintar a génese temporal do próprio quadro. Em Manuel Amado a pintura não é apenas uma pintura sem destinador, é também uma pintura sem génese temporal: uma acumulação de gestos que esqueceram no tempo. Ou, por outras palavras: um tempo que se sedimenta à margem do tempo. O único tempo é o do próprio quadro ao guiar-nos nesse percurso perplexo do olhar: uma exigência cega, afinal. Ou, se preferirem, uma duração suspensa, uma espessura calma e jazente.

Suspeito, contudo, que há nesta proposta de pintura, neste retraimento, nesta sageza conventual, um gesto apesar de tudo polémico. Numa época em que qualquer imagem nos surge vectorizada pela energia e a velocidade, em que qualquer espaço é trabalhado pelo que alguns chamam, para transcrever os efeitos da mais sofisticada tecnologia, a profundidade de tempo, Manuel Amado consegue subtrair-se a uma tal vertigem e responder às crepitações do desejo por um retorno ao prazer de uma materialidade primordial que nos restitui a serena contiguidade com as coisas. Como escrevem os teóricos, a cada avanço da high technology corresponde uma tendência para a high sensitivity. Tudo pousa, tudo repousa, tudo se faz pausa e alegria da contemplação. Esta pintura não indica um caminho, não traz uma mensagem: ensina, pelo vazio dos mestres ou destinadores, a repousar de todas as mensagens. Basta reler Ricardo Reis: «Não quero recordar nem conhecer-me. / Somos demais se olharmos em quem somos. / Ignorar que vivemos / Cumpre bastante a vida.»