Nuno Júdice Jogo de Reflexos 1997

Poemas publicados em Jeu de reflets/Jogo de Reflexos
« La grande crue », peintures de Manuel Amado, Chandeigne, 2001

ÂNGULO

Um reflexo de luz morre nas águas
estivais. As algas proliferam na sua
textura, bebendo o último brilho
da janela. O quarto fecha-me numa arquitectura
branca. Respiro um ritmo de lençóis
afogados. Uma voz interior enuncia métricas
ovais, que repito na corrente monótona
do verso. Esta luz, porém, tem a ossatura
da melancolia. Os seus olhos abrigam o soluço
de um bater de asas. A sua boca fecha o grito
nocturno de animais feridos pelo ocaso. Pego
nos seus dedos e puxo-a para o sol : anjo
que empalidece sob o fogo diurno! Sinto
o seu breve fulgor ; e deixo-o para trás, corpo
amortalhado pela tarde, trocando a sua pele
de musgo pelo mármore da frase,
o frio táctil da pedra.

 

PERSPECTIVA

Estudo um naufrágio de horizontes :
ausências impressas num ouro de indiferença,
névoas dispersas nos flocos da imagem. Imagino
a linha de vidro à transparência
da madrugada: os dedos do sol, num espreguiçar
de fogo, estilhaçando os seus limites. Sonho
que uma vida possa existir do outro lado
dos batentes : um caixilho de sensações
apodrecendo, devagar, com o ruido lento
de murmúrios invulneráveis. Deitei
essas cores mortas no colo; embalei-as
nos braços brancos da balaustrada. Ouvi-lhes
as queixas : um vazio final após
a chuva, quando todas as goteiras deixaram
de escorrer.




BUSTO

Nos teus ombros de gesso desfaz-se um resto
de música. Pedaços que sacudo da pele
com um espanador de vento; o olhar oblíquo
na indecisão do sexo. Perdi um estremecer
de marés quando atravessei o pátio
da tua voz. Apanhei as palavras, uma a uma,
como folhas arrastadas na corrente vaga
do ocaso. Estendi-as na mesa da manhã,
abertas, para que o primeiro sol
as secasse. Com o calor, voavam
até aos teus lábios : pediam-te que os abrisses,
que recolhesses cada uma das suas sílabas,
que bebesses o licor ácido das suas
consoantes. Fora dos lábios, as palavras
morrem com um estertor de musgo. Corri
atrás delas, com uma ânsia de coleccionador
de borboletas. E vi-as fugirem-me por entre os dedos;
limpei um resto de sons na espuma do canto.



LIÇÃO DE BOTÂNICA

As raízes dão-me a tentação da terra,
um fulgor de ecos subterrâneos, o impulso
cego dos dedos que rompem o caminho
do centro. Desço, com elas, em busca
de águas férteis, de margens de lodo,
de um abraço lacustre nos fundos
sem fim. As raízes ensinam-me o rumo
da primavera, mesmo que isso me obrigue
a seguir na direcção oposta à luz,
ao ar seco da manhã, aos ramos que acolhem
os primeiros pássaros deste ano. Onde
elas chegam, no limite das pedras,
não se ouve o canto nem se adivinha,
nos botões que se multiplicam por entre
as folhas, um futuro desabrochar de cores. Mas
em cada inflorescência o vento faz dançar
o triunfo da raíz; e uma alegria natural
solta-se do ramo quando a seiva o percorre
- eclosão da treva na transparência do instante,
íntimo êxtase do invisível na ostentação
da flor.



REVELAÇÃO

Nada do que se mostra dá a verdade
do instante : uma navegação de ângulos,
por entre o rumor de uma áspera
sementeira.

Colho então os frutos da cinza.
É como se o seu sabor se formasse
nos dedos; e o sumo negro da fuligem
corresse para dentro do sangue,
para o interior da casa.

Mas ninguém fechou a janela.
o vento não precisa de empurrar
os seus batentes; o choro
correu os reposteiros por entre
um enxame de confidências.

Tudo o que me disseste
coube nesse preciso instante,
que o tempo cobriu com o
peso das suas águas.



VORACIDADE

Sob um mosto de nuvens a fermentação
transforma o ser. Aéreo, um casulo de lodo
liberta-o da terra; mas o sonho ígneo
apaga-se na mortalha húmida. Abarca dos corvos
passou à sua frente; a rapariga da proa
fixou-o  com os seus olhos de marfim. Ele, dormia. Ou
então, limitou-se a esperar que o chamassem,
não fez a pergunta capaz de impedir a erupção
de erva nas almas, nem ouviu o riso doce
das mulheres que partem para as colheitas
outonais. O barco naufragou; a rapariga flutua,
de olhos abertos, espelhando na transparência
das suas órbitas o vazio do azul; o riso secou
nos lábios das mondadeiras de reflexos,
ébrias com as imagens mortas de novembro. Gota
a gota, a sua vida enche o copo
do instante.



PRINCÍPIO

Mesmo os que se perdem nos átrios
circunstanciais do poema, empurrando as portas
e devassando a obscuridade, não sabem
qual a imagem de onde irradia
o centro. Há, no entanto, um caminho
para lá chegar : por entre árvores e pássaros,
ouvindo aquilo a que chamaram «a música
das esferas», ou tapando os ouvidos a quem
pergunta : «Para onde ides? Que levais convosco
nos bolsos? Quem esperais encontrar?» A resposta estará
no silêncio que puderdes oferecer;
na convicção de um canto na turbulência
do labirinto. Então, tocareis a pedra do fim :
a primeira pessoa do mármore na conjugação
dos corpos.



A DECLINAÇÃO DA PERSPECTIVA

Ensinas-me o caminho do fundo :
os degraus que se descem até não haver
outros degraus; o limite entre o ar e a água,
a terra e o fogo. É onde a luz
termina : reflexos exaustos numa ânsia
de sombra.

Desço as escadas sem ti : os braços
que se partem na declinação da perspectiva,
um olhar afogado nos alfabetos sub-
marinos da memória. Então, procuro-te
no contorno do espelho. Um vidro
embacia-se com a tua ausência.

Esqueço-me de tudo, por fim. Só
a luz sobrevive em cada canto, como se
todas as linhas fugissem
por entre os versos.



ÍSIS

No instante inverso, a noite fica
sem forças para o musgo. Uma rotação
de trepadeiras invade o espírito,
prende os movimentos da alma, absorve
lentamente as frases que os lábios
sonharam. Crescem, então, todos
os arbustos. Uma proliferação de névoas
obscurece a pele : manchas nítidas
como a impressão fotográfica de um voo
de insectos no líquido das mães. Descem
para o corpo da terra; fundem-se com
as memórias, as deusas, o cio
das últimas toupeiras. Colho-as num frasco
de vidro opaco. E os seus olhos fixam-me
num negrume de placentas frias.



VÓRTICE
Uma destilação de treva : a sua luz
negra caindo sobre o peso de outras luzes,
reflexo morto de antigos universos,
deixando atrás o eco que não volta.

Um brilho no fundo
do ocaso : o gesto sangrento do horizonte,
curvatura de planeta vago por entre
as hesitações de quem procura o caminho.

Depois, a resignação dos que compreendem
a eternidade : a flor mais frágil nos dedos
de um anjo melancólico, cujo voo se perdeu
nos sobressaltos da queda.



INICIAÇÃO

Em que planície se oculta
a semelhança das coisas e dos seres? Agora
que um sol avança pelo branco da cal,
pondo à vista os filamentos de treva que o dia
oculta, quantas colinas se erguem entre
um e o outro horizonte ! Visível, só
o arco que indica a saída do labirinto desenha
o círculo perfeito com que os últimos fins
se anunciam. E de cada porta, como se fosse
a morada provisória de quem passou, os rostos
assomam, sem que os vejamos, espreitando
uma transumância de profetas desempregados. Chamo
os seus nomes : soletro cada sílaba com
os seus sons inteiros, como se assim os corpos
se pudessem voltar a reunir, libertos
da mutilação ritual de madrugadas iniciais. Mas
o pó permanece sob o lodo, e o lodo sob o peso
de barcas afundadas, restos de remos, murmúrios
abstractos de uma navegação de sombras. Então,
qual das portas escolher? Que vulto
me espera por trás dos vidros? Nenhuma voz
me indica o caminho.




CHEGADA
Empurro a porta do hemisfério
diurno. Invoco a lógica de explicações
solares, a sede de uma retórica
sublime, o gozo ácido de uns
lábios matinais onde a
palavra rebenta como a flor negra
do ocaso. Entro no pátio
devastado pelo fogo das figuras,
atiro-as para o chão da frase, deixo
à vista um alinhamento de pedestais
carregados com o silêncio da
imagem. Que rio secou por dentro dela? Que
sombra impede que o coração da figura
bata com a antiga força do amor? Por
que cedeste ao astro sujo da madrugada,
como se a limpidez da noite
não chegasse para saciar a tua sede
de plenitude? Presa da terra: tronco
sem raiz, centro sem esfera. Pura
presença de nada.



JOGO DE REFLEXOS

Um pássaro saltou dos ramos
da estrofe. Hesita na direção a tomar;
perscruta o vento, como se o norte
não estivesse no seu rumo. Leva consigo
o canto, a música interrompida
da manhã, a alegria de um riso
quebrado como o arbusto da margem. A sua voz
fecha-se como a casa desabitada
do presságio.