José Cardoso Pires1983

Texto referente à exposição:
Óleos de Manuel Amado - Galeria de S. Mamede, Lisboa, 1983
Aqui, tudo me diz, são os espaços de solidão: quando os olhos sinto que me olham, estão todos iluminados por um eco muito íntimo – só deles.

Há também uma amenidade de nostalgia, vejo agora. Memória e infância, despedida.

Daí a pureza do traço e da cor, a exactidão dos muros e dos móveis que nos habitam carregados de história (datados dir-se-ia) e também esta ironia magoada que é feita de arrumação e de rigor. Porque a compostura e o rigor, quando levados a uma imobilidade única, pessoalíssima, são uma subtil e inquietante ironia, bem o sabemos. E esta que está aqui, longe de ser passiva, tem a quase crueldade de nos fitar como um registo intencional, uma presença. Digamos que é o olhar daquilo que nos vê partir e permanece.

Mas pode um olhar do que se deixa ser alguma vez tão concreto e tão luminoso?

O das casas sim. As casas, paredes, degraus, objectos, ângulos de sombra, todo esse mundo nos aparece com o ostinato rigore dum levantamento ou duma «memória descritiva».

Nitidez de geómetra, é o que lembra. E então a pessoa é facilmente tentada pela precisão do traçado e pelo arrojo matemático com que a luz se projecta.

Só que neste caso o «ponto de fuga» que enfoca o desenho e a descrição é ele, o Pintor e a sua Memória, e dito isto todo o rigor se inverte: o real da paisagem de tão obstinada e «fielmente» projectado, acaba, a uma segunda leitura, por se revelar inquietantemente insólito.

É uma subtil insinuação de desordem na arrumação sedutora; ou, se quisermos, o discretíssimo humor com que o fantástico coabita com o real mais palpável e mais objectivo.

Pensamos então como tudo é denso e contenso por dentro, estes muros, estes chãos.

Tudo tem alma e respira no mais secreto silêncio e há sempre uma pegada, um rosto, diluídos na cal ou na atmosfera destes espaços despovoados. Um rosto que nos fita com nostalgia de si mesmo, que se despede. Um só?

É por isso, penso eu, que a pintura de Manuel Amado tem uma presença assim tão hierática e tão vigilante na sua luminosidade. Não há nela o menor panfleto individual, apenas memória e passagem. É um degrau, uma janela, uma parede (os sinais que nos ligam ao mundo dos outros) que o dizem com a sua eternidade de cor, sua linha imaculada, sua luz. Que o dizem, não: que o sabem. E nesse testemunhar está tudo, porque a dualidade Casa-Rua, Sombra-Luz, transforma-se aqui na declaração mais íntima do movimento quotidiano de todos nós. É lá, nessa matéria de espaços abandonados que estão cristalizadas as nossas memórias de viagem e regresso, de um sonho (evasão) e de rotina.

Deus, como nos perseguem e nos murmuram. Como nos enternecem, também.