Juan Manuel Bonet Manuel Amado, Um Pintor de Lisboa 2004

Texto referente à exposição:
Manuel Amado, Pintura 1992 / 2004 - Fundación Antonio Pérez, Museu de Arte Contemporânea, Cuenca, Espanha, 2004
Tradução de Pedro Tamen

Manuel Amado, lisboeta de 1938, cuja obra acompanho desde 1995 – data em que foi exposta pela Fundación Arte y Tecnologia de Madrid, e em que fomos apresentados pela nossa comum amiga Lourdes Castro – é um pintor na sua cidade. Um pintor de Lisboa, como Jakub Schikaneder o foi de Praga, Léon Spilliaert de Ostende, Antonio Donghi de Roma ou Victor Cúnsolo de Buenos Aires. Um pintor de linhagem metafísica, em que confiamos como intérprete da alma da sua cidade. Um pintor à imagem e semelhança dessa cidade como que fora do tempo. Um pintor de ritmo lento, concentrado no exercício silencioso do seu ofício.

Não é Manuel Amado o primeiro pintor lisboeta que se identifica com a sua cidade natal. Desde sempre saboreámos a Lisboa aérea, irreal e transparente de Maria Helena Vieira da Silva, que nos seus exílios francês ou carioca sempre se sentiu lisboeta, tendo guardado consigo o segredo, a essência dos azulejos e da alma da cidade que deixara para trás; de Vieira, saudosa personagem tutelar da nossa infância, que víamos todos os Natais, rue de l'Abbé Carton, e que muitos anos depois reencontrámos numa arborizada pracinha lisboeta, na fundação que perpetua a sua memória, e também a do inesquecível Arpad Szenes. Conhecíamos igualmente, quase desde sempre também – desde que em meados dos anos 60 nos foi revelada por uma reportagem do diário madrileno ABC – a encantadora e melancólica Lisboa de Carlos Botelho. Mas não estamos falando apenas de auto-retratos portugueses. Entre os que se renderam ao encanto da cidade única, não faltaram os forasteiros. Os que melhor o souberam exprimir terão sido talvez os escritores franceses, e aqui há que recordar páginas exactas de Valéry Larbaud, de Paul Morand, de Antoine de Saint-Exupéry… Na área da fotografia, as objectivas do também francês Bernard Plossu ou dos espanhóis Javier Campano e Manuel Sonseca souberam captar a severidade da arquitectura pombalina, a geometria flutuante dos eléctricos – irmãos dos de Praga retratados por Sudek –, o encanto antiquado dos néons, os navios no estuário…

Que terá Lisboa que tanto nos cativa a todos? Cidade de pedra, tal como a sonhou Baudelaire, que nunca chegou a visitá-la, a vegetação tem nela, apesar disso, uma grande presença, algo que se percebe muito bem quando subimos ao Miradouro de São Pedro de Alcântara, ou ao Alto dos Limoeiros, ou ao Castelo de São Jorge, ou quando caminhamos por algum dos seus jardins secretos, como o Botânico da Universidade, com acesso pela rua da Escola Politécnica. Cidade branca no dizer do cineasta suíço Alain Tanner, as coisas não são porém tão claras, pois ela surge-nos sempre com o encanto da aguarela, como um labirinto de paredes cor-de-rosa, vermelhas, amarelas, ocres, verdes, azuis. Cidade atlântica, contempla-se no espelho do Tejo, do «mar da palha», mas tem já – e o nosso grande Ramón Gómez de la Serna, mais lusófilo que qualquer outro escritor espanhol do seu tempo, percebeu-o muito bem – algo de extra-europeu, de oriental, e mais ainda, de latino-americano, de brasileiro. Cidade que em 1915 foi, com Orpheu e logo a seguir com Portugal Futurista, um dos laboratórios da modernidade, conserva sempre como que algo de antigo e, já o disse, de fora do tempo, que a converte num refúgio perfeito, numa cidade de exílio, e também de viagem mental ao passado.

Mencionei, algumas linhas atrás, o Miradouro de São Pedro de Alcântara. Este é um dos meus lugares predilectos do mundo, um daqueles lugares que identifico sem rodeios com a felicidade. Sempre que posso, é por ele que começo os meus percursos lisboetas, percursos que, como os que sigo noutras cidades, costumam ser obsessivos, repetitivos, e que me levam a muitos dos lugares que aparecem representados nos quadros de Manuel Amado. Ex-arquitecto, que abandonou definitivamente essa profissão em 1987 para se dedicar exclusivamente à pintura, Manuel Amado sente uma especial predilecção pelos edifícios da sua cidade natal: tanto os centenários e de grande porte – por exemplo, os da Rua do Comércio (1994), ou os da Praça do Município (1997) – como outros mais recentes, mais anónimos, mais humildes… «Aqui – escreveu José Cardoso Pires no seu excelente texto para o catálogo da exposição de Manuel Amado Lisboa, Pintura: 1975-1997, realizada em 1998 no Palácio Galveias da capital portuguesa – é de silêncio que é feita a voz da cidade», uma cidade, acrescenta, de «uma serenidade doméstica.»

Giorgio de Chirico e outros novecentistas italianos, o norte-americano Edward Hopper – que, como num texto definitivo Yves Bonnefoy demonstrou, é também metafísico à sua maneira – e de certo modo também o Balthus mais urbano, o Paris mais velho e o Magritte mais… normal, por assim dizer, constituem referências fundamentais para o projecto pictórico de Manuel Amado, projecto de que a figura humana está quase totalmente ausente – uma excepção: A Ver a Serra (2001) – e cuja raiz metafísica foi sublinhada pela maior parte dos seus glosadores, e muito especialmente por José-Augusto França e Bernardo Pinto de Almeida.

Sabemos pela biografia incluída em alguns dos seus catálogos que é de finais dos anos cinquenta, isto é, da época em que era ainda estudante de Arquitectura na sua cidade natal, que data o interesse de Manuel Amado pela obra pioneira de Giorgio de Chirico e, em termos mais gerais, pelo Surrealismo. Foi um pouco mais tarde, já nos anos sessenta, que começou a dar-se assiduamente com Cruzeiro Seixas, um dos principais surrealistas portugueses, de quem muitas vezes ouvimos falar ao chorado Eugenio Fernández Granell. Em contrapartida, Hopper, que durante tanto tempo foi um mero produto de consumo local norte-americano – tal como durante décadas Fernando Pessoa foi um mero produto de consumo local português, ou Jorge Luis Borges um mero produto de consumo local argentino – só foi por ele descoberto bastante mais tarde, em 1987, numa viagem aos Estados Unidos, e desde então constitui para ele uma referência importante, o que se revela claramente num título como Vê-se Mesmo que É Domingo (2002).

A Praça do Comércio (1989): nunca nos surgiu tão metafísico, tão sereno e em calma, e ao mesmo tempo tão inquietante, o Terreiro do Paço, espaço urbano inigualável, muito do gosto do mencionado Larbaud – que na sua Lettre de Lisbonne à un groupe d'amis, de 1926, o qualifica de «la plus belle place d'Europe» –, como no quadro magnífico em que Manuel Amado o soube «dizer», quadro esse que tem algo de veduta veneziana e em que, completamente desaparecidos, como por arte mágica, o trânsito, os peões, as embarcações, as construções ribeirinhas da outra margem – reduzidas a uma paisagem quase geométrica –, ganham todo o protagonismo a esplanada deserta, os candeeiros – alguns de outros tempos e outros, por assim dizer, ainda de ontem –, a estátua equestre que preside à praça, os imponentes edifícios ministeriais com arcadas que a cercam…

Do porto próximo, tão importante desde tempos imemoriais na capital portuguesa, e ultimamente tão recuperado pelos seus habitantes, dos grandes cargueiros que nele atracam, das gruas que com eles trafegam, fala-nos Cais em Lisboa (1988), também uma imagem abstraída das contingências e do ruído e da fúria do presente. Nela não falta, à direita, um camião mastodôntico, monumental, com o seu longo trailer, mas esse camião, obviamente, não tem lá à frente, na cabina, qualquer condutor: para não variar, para não violar as regras não escritas desta pintura sem personagens.

As estações de caminhos-de-ferro sempre foram lugares metafísicos, e bem se sabe isso desde os tempos de Giorgio de Chirico, o fundador. «Chirico ou l'heure du train», escreveu por aquela altura o sempre engenhoso Jean Cocteau.

Aprendemos muito de um país frequentando os seus comboios e estações, acostumando-nos aos usos que neles imperam. Em 1986 Manuel Amado dedicou uma exposição inteira, Comboios, Estações e Apeadeiros, realizada na Galeria de São Mamede, que por essa altura se ocupava da sua obra, a este universo, que, se bem que pertença a um passado abolido, ou em vias de ser condenado à «via morta», continua a atrair-nos poderosamente. Voltou à carga em 2000 na Galeria Antiks Design com a exposição Viagem à Volta de Uma Estação Abandonada.

Há roupa estendida em mais de um quadro de Manuel Amado, tal como frequentemente se vê nas ruas e largos dos bairros lisboetas mais humildes. Proponho que se contemple essa roupa estendida como tranquilas e demóticas bandeiras de liberdade, irmãs das «bandeirinhas» que surgem nos quadros, de tão poética geometria, do brasileiro Alfredo Volpi.

Ruas completamente anónimas. Ruas que, chegados a um certo ponto, não sabemos se são reais ou imaginadas. Onde é este Fim de Rua I (1997), onde estão os seus edifícios sem carácter, a sua geometria, o seu candeeiro, as suas paredes cor-de-rosa e amarelas, a sua luz e a sua sombra, a sua extrema serenidade? Onde se situa, ainda mais abstracto, este Fim de Rua II do mesmo ano e, ao fundo, aquela grande claridade por trás da penumbra?

Já me referi ao meu querido Miradouro de São Pedro de Alcântara, cuja fonte julgo estar ouvindo enquanto escrevo estas linhas na Madrid tórrida, sufocante, deste incomum mês de Julho. Lisboa é cidade de miradouros, e estes não faltam na obra de Manuel Amado, belos miradouros de além-mar sobre o azul e a luz daquele estuário do Tejo que nos deslumbra contemplado da Cidade Alta, miradouros com cadeiras às riscas, com palmeiras, com algo de muito marítimo e muito twenties, miradouros para passar docemente as horas, naquele sonho de exílio e farniente que sempre representa uma viagem até Lisboa, até à Casa Sobre o Mar, muito especialmente para quem, como nós, vem do interior da península.

Manuel Amado consegue a proeza de alguns dos seus quadros mais intensamente lisboetas não aludirem a qualquer paisagem urbana, antes serem inspirados em interiores. Interiores com janelas – uma ou outra, isso sim, aberta para um tranquilo horizonte marinho –, com soalhos geométricos de ladrilhos, com cristaleiras, com cortinas, com cadeiras alinhadas como em No Barbeiro (1989), com fofos cadeirões que nos recordam a célebre máxima de Matisse, com misteriosos baús cheios de segredos, com malas que convidam à viagem, com livros amigos, com candeeiros irmãos dos de Vuillard, com um objecto tão contemporâneo como uma televisão e, evidentemente, com luzes e com sombras, que a luz e a sombra são as grandes protagonistas desta pintura, uma pintura entre cujos melhores exemplos, de novo no exterior, de dia, há que mencionar Sombras na Fachada (1999), um quadro pertencente à bela série «A Casa de Mateus», um quadro cuja atmosfera e cujo título me trazem à memória certos versos imortais de Paul-Jean Toulet, o fantaisiste francês tão admirado por Nuno Júdice, precisamente um dos amigos poetas de Manuel Amado, e um subtil glosador da sua pintura.

Nesses seus maravilhosos interiores, tão seus, Manuel Amado sente especial predilecção pelos longos corredores em penumbra, e pelas escadas, lugares de passagem, neutros, que nos inquietam, como em certos interiores de Magritte. Enquanto outro surrealista, o muito literário Pierre Roy, faz aparecer numa escada uma terrível serpente, Manuel Amado, em contrapartida, não precisa de qualquer presença viva para nos desassossegar.

A propósito de desassossegos, devo dizer que o tríptico O Quarto de Pessoa (1993), tanto na sua versão pintada, propriedade da Casa Fernando Pessoa, que o encomendou, como na sua versão litografada, constitui um autêntico tour de force: um interior lisboeta a preceito, representado a três horas distintas do dia e da noite, fala-nos de um personagem ausente – apenas aparecem, numa cadeira, o seu inconfundível chapéu e a sua gabardina – que é sempre, e sem lugar para dúvidas, a presença mais importante na capital portuguesa. Das três imagens sucessivas, gosto especialmente da terceira, da nocturna, onde o olhar do espectador, que de princípio se sentiu magneticamente atraído pelo círculo de luz desenhado pelo candeeiro dentro do quarto, acaba por fugir para a janela iluminada da casa cor-de-rosa em frente: sempre o enigma que nas cidades os interiores iluminados propõem a quem passa.

Bom-dia, Lisboa (1987) intitula-se, muito significativamente um dos quadros de Manuel Amado mais resplandecentes e que mais atraem a minha atenção. Embora tenha acabado de mencionar uma visão nocturna, o que é certo é que nas vedutas deste pintor de Lisboa, como muito pertinentemente foi sublinhado por Bernardo Pinto de Almeida, é quase sempre dia, e de manhã, e quase sempre faz sol, um sol intenso, «de justicia», como nós, espanhóis, costumamos dizer. É de facto uma pintura à luz do dia, que afasta as neblinas, as obscuridades, as confusões.

Uma série que considero muito especial é aquela, pintada em 1996, que se intitula «A Grande Cheia», e que foi exposta em Paris em 2001 no Centre Culturel Calouste Gulbenkian como La grande crue. Muito especial – impressiona-me sobretudo o quadro intitulado A Esquina – porque nela, fazendo gala de uma atitude que de certo modo tem algo de inesperadamente surrealista, Manuel Amado representa uma série de cenários lisboetas, e portanto para ele familiares, submergidos por uma tremenda inundação, igual às que assolaram Portugal por aquela altura.

Outras séries, a meu ver também elas muito especiais, ambas de 1999, são as intituladas «O Jardim Encantado» e «O Meu Jardim», nas quais Manuel Amado soube exprimir a calma e a ordem de certos jardins portugueses: lugares em paz, e ao mesmo tempo enigmáticos, à imagem e semelhança da sua pintura.

Belo conjunto de quadros, também, é o que Manuel Amado pintou em Setúbal, cidade que não conheço, mas que, contemplando-a através dos seus quadros – de entre os quais gosto especialmente de Devem Estar Atrasados de 2002 com a sua praça sombria, que tem algo de magritteano –, eu imagino paradigmaticamente provinciana.

Nos últimos tempos Manuel Amado decidiu concentrar parte dos seus esforços num género de tanta tradição como é o da natureza morta, dentro do qual depressa conseguiu alcançar, nas séries que intitula Grupos e Pequenos Encontros, óptimos resultados, que demonstram que conhece perfeitamente a herança de Zurbarán, de Chardin, de Morandi e demais partidários da quietude dos objectos. As suas naturezas mortas silentes, na penumbra, nascem do aprofundamento num mundo de objectos que já estava presente em não poucos dos seus interiores: naturezas mortas em que a luz é, de novo, muito importante, sobretudo tendo em conta que frequentemente se abrem para uma paisagem, seja ela de interior, seja de mar.

Numa praça tranquila de Lisboa, a luminosa e regrada casa de Teresa e Manuel Amado, que ainda há poucos meses visitei na companhia de Manuel Fontán, e de cujo jardim recatado se vê a Ponte, é uma das mais belas «case della vita» que conheço. É uma casa que considero ser absolutamente coerente com a personalidade estética deste casal tão unido. Ali, livros, revistas, fotografias amarelecidas e, nas paredes, várias obras de Almada Negreiros, entre elas um dos seus desenhos lineares mais conhecidos – e mais felizes – dos anos trinta… tudo isso nos recorda a amizade que o pai do pintor, o escritor e encenador Fernando Amado, manteve com o autor de Pierrot e Arlequim e com outros modernistas. Como herança paterna, há que considerar, além do mais, uma série de cenografias que Manuel Amado realizou, e quando jovem a sua dedicação ao teatro como actor. Em 1984, no C.A.M. da Fundação Calouste Gulbenkian, contracenou com Lourdes Castro na representação da obra de Almada Antes de Começar. E também desta amiga há peças espalhadas por diversos recantos da casa.