Emídio Rosa de Oliveira O entendimento visual e a temperatura da cor na pintura de MANUEL AMADO 1993

Texto publicado em:
Revista COLÓQUIO / Artes – Número 96, Lisboa, Março, 1993


À primeira vista estas pinturas de Manuel Amado cegam-nos pela claridade luzente e manifesta dos seus enquadramentos. Não há nelas, nem sobrecarga formal, nem decorativismo. A fluidez e a depuração são conceitos¬-chave que abrem nesta pintura estes espaços mnésicos, que, à custa de tanta luz, se projectam numa exterioridade marítima que enche de envolvência e de brilho estas imagens. Só deveríamos falar daquilo que vemos — sem incorrer nas metáforas e nos rasgos retóricos da descrição.
"Ver" ou descrever estas visões, sem mais, não impedira evidentemente de pensar a sensorialidade como o lugar sensível que nos afecta, no decorrer desta série visiva de pintura.
"Ver" desemboca no horizonte, mas antes de aí chegar há uma corporalidade espacial que ganha e adquire forma no plano. A quietude destas nítidas visões não é sentimental, mas física. Fixam-se na tela, mediante camadas finas de tinta, simulacros de um mundo que está em vias de desaparecer. O pintor actua como um mobilizador... "Os pintores não esquecem, fixam, a memória funciona neles como uma imagem para todos os lados, onde se procura um centro para olhar e onde desagua uma mobilidade de centros"1. Neste pintor, a memória não aparece sob a forma de rostos, a sua pintura constitui-se sempre numa relação com a luz e com os vários enquadramentos que delimitam e ao mesmo tempo dilatam o espaço.
Tudo se conjuga nesta pintura para que a luz se transmute e se distribua na transparência da cor; o liso das paredes e o lustro que escorrega dos móveis sublinha o carácter polido destas imagens, onde a depuração dos enquadramentos prossegue o seu diálogo em surdina com a luz. "Pinta-se para ver melhor"2 — o recordar desentranha-se da ocularidade destas telas que apontam selectivamente para a paz e a preservação silenciosa dos lugares. Estamos perante uma ecologia visual, que longe de nos espantar antes acentua as qualidades inerentes ligadas à matéria e ao luxo da luz atmosférica portuguesa que tem sido alvo do aproveitamento de vários cineastas. Conjugam-se nesta pintura, designadamente, duas pulsões: a escópica, que sem recorrer ao "sharp focus" dos hiper-realistas, materializa na tela uma "sensorialidade da mão" e um cinematismo que recorta o espaço em função da idealidade incorpórea da luz. Estas imagens são "imagens justas", não surgem afectadas por qualquer devaneio literário — comprovam somente em pintura o lado arquitectónico e aurático dos lugares e dos recantos que o olhar duplamente, ou em segundo trajecto, revisita.
A óptica e a geometria do piano pictórico caminham a par e passo, desenvolvendo um modo de ver consentâneo com a figura do "entreaberto". A envolvência destes "teatros da memória", recortados pela soleira da porta, ou da janela, traçam um vaivém contínuo entre o interior das casas e o exterior oceânico da paisagem.
A geometria, pelo seu rigor de recorte, conjugada com os derrames de luz, institui um volume plástico de tonalidade tangível. Sob os efeitos da luz tudo oscila, o próprio real surge transfigurado devido ao sábio e eloquente saber arrumado da geometria. Esta porta-se como uma arte seca que delimita o espaço inscrevendo nele rotas para ver ao perto e para ver ao longe. O olhar pictórico faz ecoar de quadro em quadro um devaneio mental que lembra a frase lapidar de Fernando Pessoa: "Quando quero pensar, vejo"3. Para Manuel Amado, a pintura, como ele próprio o afirma, "faz-se para ser vista, devendo corresponder às altas exigências inerentes À acção de ver". A pintura, prossegue M. Amado, "é o modo mais natural que o homem tem para fixar e transmitir uma imagem recriada por si próprio. E também o modo mais directo que existe de representar a realidade, considerando que a realidade somos nós que a fazemos e que, assim, a sua representação se transmite directamente, de mente a mente, sem interferência da palavra"4.
A óptica modula a visão emprestando-lhe cor e transparência. O entendimento visual que se desprende destes quadros é o resultado de combinações de vibrações sonoras e luminosas de vária frequência. Em surdina o ar transmite uma sonoridade abstracta no interior destes vazios, cujo efeito plástico nos deixa perplexos. São salas de estar, corredores, recantos, terraços de uma "Casa junto ao mar” que deixam ver a transparência diáfana de uma luz que flutua à nossa frente. Estamos à beira de tudo intuir, sem nunca lá ter estado: esta "Casa junto a mar" instantaneíza em pintura e por partes os vários momentos e a globalidade circundante da atmosfera que caracteriza a temperatura sensível de um lugar.
O quadro desvenda, pela multiplicidade dos ângulos e dos pontos de vista, o fazer-se pictórico de um trajecto do olhar dentro do quadro. Não são imagens coladas a um referente, ou a um modelo que o pintor tivesse que restituir, mas imagens imaginadas, incluídas já anteriormente no estado latente da lembrança.

A divagação do ver

   O regime diurno destas visões exteriorizam a imagem em sensação de estar, a imagem é o lugar de um acesso, move-se sem nunca fechar o campo à divagação do ver. Divaga-se mentalmente, dado que a paisagem varia e se projecta sobre nós e a transparência dos enfoques pictóricos embate no ecrã reflexivo da mente. A actividade perceptiva funciona como uma interface. O visível adere ao invisível e a postura do pintor é a de um vidente que captura uma impressão, um afecto associado à natureza efémera e tangível dos lugares e dos objectos:

As coisas existem porque nós as olhamos, e do modo como as vemos depende a influencia que, pela mediação da arte, exercem sobre nós. Olhar para uma coisa é muito diferente de reparar nela... Presentemente, as pessoas reparam nas névoas, não por serem névoas, mas porque poetas e pintores lhes conferiram todo o misterioso encanto dos seus efeitos. É certo que as brumas sempre existiram, mas não as víamos do mesmo modo como passamos a vê-las, depois de a arte as ter inventado.5

A arte consiste neste seguimento em assegurar para o objecto estético uma forma específica de percepção, restituindo-nos na sua pureza material a percepção do que se tornava invisível. A visualidade cromática remete-nos não para um qualquer naturalismo, mas para uma utopia que só tem Iugar primacialmente na representação. A idealidade exposta de um lugar pode ter incidência e relação com o real conhecido, mas de muito mais ela é aqui inauguradora. Olhar para um quadro de Manuel Amado é perceber que os quadros podem exceder o mundo a ponto de se tornarem em maquete do mundo. A ficção espacializa-se no quadro, adquirindo forma e cor no interior de uma quadratura que não é clausura, mas um dispositivo onde a visibilidade se interioriza na dissolvência atmosférica de uma cor, ou de um estado de espírito. Tal impressão é-nos descrita pelo pintor:

Passeio dentro da casa vazia, entro em cada compartimento e volto sempre ao corredor. Fortes manchas de Iuz exterior abrem-se nas penumbras frescas. Um vago relento de maresia invade todos os recantos, o sossego é de uma grande leveza. Enquadrada nos vãos abertos para fora está sempre presente a linha pura do horizonte no mar que se torna imensa e sumptuosa quando saio para o terraço.6

O quadro instaura um microclima. Estas imagens incorporam uma temperatura que só o olhar pode atingir dentro do espaço limítrofe mas mutante de uma paisagem. A força ecológica destas imagens provém de elas se saberem mais do que imagens, a picturalidade as altera desligando-as da ligeireza e da mediocridade ambiental que infesta o mercado das imagens do audio-visual7. "Ver" depende das hierarquias e das dosagens infinitesimais do claro-escuro. O que fugazmente se vê comporta-se como um fluido, a cor não é solida, mas fluente. A cor visível nasce, no fundo, do encontro de duas luzes, uma incorporada no espaço opaco e a outra espalhada pelo espaço diáfano. O visível é captado através do que A. Lhote chamava "jogo dos ecrãs"8 e que ele define como uma sucessão de oscilações, um vaivém incessante de valores que não se anulam senão depois de ter dado ao espectador o sentimento de profundidade: "la lumière n'éclairerait rien si rien ne lui faisait écran"9.
As imagens da pintura são imagens que se fazem. Não servem de suporte a nenhum discurso, a especificidade delas reside em dar a ver e mostrar a superfluidez e a viva claridade de uma superfície e de nos conduzir "à essência singular de um lugar"10.
O quadro reflecte o que foi lá posto, transforma-se em superfície polida, em espelho mental de uma transmutação física. O mar vê-se da tela e na tela. O quadro de que falava Alberti e Leonardo da Vinci, em termos de parede de vidro delimita de facto um plano bidimensional sobre o qual o pintor deposita uma imagem. Mas, de certo modo, mesmo empregando as leis da perspectiva, os quadros de Manuel Amado não são prisioneiros da rigidez da janela renascentista, a pintura sai pela janela movimentando-se dentro do enquadramento móvel da vista. O mar que se contempla não é uma fotopintura, mas um lugar correctamente arquitectado com os próprios recursos e artifícios de luz e de tinta. São retratos de luz (moving pictures) e não fotodramas. A imagética rigorosa destes quadros surge comandada por uma vontade estética que se resume numa escassez e numa escolha minimal de elementos e numa tentativa que se compraz em experimentar a luz como matéria plástica, desentranhando dela, pelo desenho, efeitos incorpóreos.

Os lugares auráticos da memória

Cada tela é uma meditação sobre a visibilidade e a espacialidade pictórica do enquadramento. Olhar para esta pintura pressupõe ter em conta que o "ver" nunca se exerce fora do sentimento das distâncias. Contrariamente e em oposição à escultura, "qui s'empare du visible, la peinture est un art de la distance. Elle marque une distance par rapport au réel... elle suppose une non-maîtrise, une non-possession de l'objet. Voir, c'est ne pas toucher, ne pas mettre la main sur l'image, ce qui dissiperait tout simplement le plaisir de voir et empêcherait de regarder"11.
O carácter suspensivo destes lugares mantem o espectador à distância, à boa distância, que a perspectiva produz para que a composição e a visão possam vir a ser da ordem do inteligível. Os lugares, esses, estão vazios, o que perpassa neles mediante efeitos de ressonância é o eco visual de uma imagem recordada e como tal alterada pelo tempo.
"Não devemos exprimir-nos como sentimos, mas como nos lembramos"12 parece-me ser esta a atitude ou postura do pintor. O lugar não é preâmbulo a uma qualquer acção a decorrer posterior à visão que a pintura dá de si. É um lugar vacante exposto à luz e ao reenvio reflexivo das suas imagens. A presença de figurantes no quadro só nos poderia distrair de ver o resto, ou seja de considerar o espaço e a luz como meros acessórios destinados a uma qualquer cenografia. É o espaço e o horizonte, a luz e o plano que são sublimes. De nada valeria pretender creditar estes elementos arquitectónicos ou pictóricos do quadro, sujeitando-os à força retórica de uma Figura. Eles convencem-nos directamente pelos seus próprios efeitos de composição denotando, uma vez tratados, um saber pictórico e técnico notáveis. A dimensão aurática e fotogénica dos lugares provém de eles, muito proustianamente e por via do pintor, se declararem no estilo. Manuel Amado celebra em pintura a intuição estética de Proust: "II y a quelque chose d'individuel dans les lieux: les lieux sont des personnes"13
A espectacularização é obtida através da cor e de enfoques materializados no rigor e na lisura dos enquadramentos que movimentam o plano pictórico. O ponto de vista ocupa o lugar vacante do sujeito, transfigurando estes lugares em planos imaginários capazes de desencadearem diante da frontalidade do quadro uma miragem melancólica enleada à natureza mortal da indagação dos lugares.
A imagem é colocada em primeiro plano "como agente de um novo ordenamento espacial, mas também como ponto de fuga para a livre vastidão do olhar"14. Estamos perante um "ver" que dá que pensar. Diante desta pintura não somos levados a pensar dentro da mágoa metafísica do ser, mas decerto impulsionados a movimentar-nos numa metafísica do estar e do sossego, sentados nesta cadeira de pano, tendo como cenário a imensidão do infinito que se desdobra no horizonte ao longe. 
O quadro começa pela superfície e o que nós intuímos como forma manifesta-se solidamente ancorado num espaço regido por linhas verticais e horizontais que estruturam o plano e por uma economia de meios que contribuem para o realce luzente e claro das cores. Não são quadros-tagarela movidos por uma retórica de intenção, são locais de sossego aos quais é possível extraír uma "aura pensativa". Para um quadro existir, dizia Focillon, "ser-lhe-á necessário separar-se da intenção, renunciar ao pensamento, entrar na extensão"15.
O apuramento óptico destas telas e os trajectos incorpóreos da luz manifestam que a visibilidade é uma espécie de derrame pictórico que alastra cobrindo toda a extensão do quadro. A sombra e a luz não se acrescem à cor, produzindo esplendor ou relevo, antes interagem, tingindo-se com ela. O mundo que nos é devolvido não é rectificado mas clarificado, o pintor transforma o mundo em pintura; estes recantos visitados traduzem o princípio geral da estética de Oscar Wilde, segundo o qual a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida. "A arte busca a perfeição dentro e não fora de si mesma"16. Ora é exactamente esta intuição que norteia a pintura de Manuel Amado. A imaginação não se encaixa num cenário já feito, expande-se na tela tentando apurar novas formas e novas focalizações de uma luz que flutua na brancura das paredes e na geometria desenhada dos pavimentos. A claridade solar não afoga os objectos. Há um extremo cuidado na aplicação de filtros (janela e vidros) que alteram e captam, a partir de doseamentos subtis, "aquele jogo mínimo do dentro e do fora que a acção modelante da mão conduz à superfície"17. Enquanto a cor actua em superfície, o desenho produz a linha. O diálogo entre o que o pintor quer e o que o pintor faz resolve-se no plano do que ele dá a ver. "O quadro é um lugar, a imagem está num lugar"18. O quadro-janela prevalece nesta pintura como arquitectura bem desenhada, sem os maneirismos do acrescento, dos efeitos facéis utilizados para fazer bonito.
A estratégia cenográfica e a depuração comandam estes lugares, que brilham por se tratar de imagens extintas condenadas a breve trecho a desaparecerem. Valha-nos estas pinturas de construção atmosférica e de reflexo visual para encararmos a tela como "superfície descritiva":

La peinture n’est pas faite pour écrire-écrire des récits, des histoires. La peinture — est faite pour donner l’évidence que le monde s'est déposé de soi-même sur la surface, avec sa couleur et sa lumière, qu’il s’y est imprimé de soi-même: ce dont "la Vue de Delft" est un exemple parfait. — Delft est là, tout simplement, pour la vue.19

A cenografia e o ponto de fuga do teatro do mundo

A cenografia pictural não se concebe senão em relação a um modelo abstracto, o da perspectiva. Trata-se de transpor e projectar uma vista para um espectador. A "mise-en-scène" é um operador formal ocupado na cosmética e na distribuição da mobilidade efémera da luz/sombra que inunda o espaço. Se a cena é primeiramente uma construção, a cenografia é antes de mais a arte de desenhar em perspectiva20 estas construções e em geral todos os lugares habitáveis.
A ”scaenographia" chega-nos através do teatro: no momento em que se descobre esta arte, serve essencialmente para pintar os decores de uma cena à italiana. Ela não é dramatizada em acção, na pintura de Amado, o que ela põe em cena através do enquadramento e do ponto de vista é o trajecto do olhar que une o sujeito à matéria plástica representada na tela. É enquanto vista enquadrada e vertical que é convocada aqui a representação teatral. Se podemos entrar nestes espaços metafísicos, destituídos de todo o psicologismo intimista, é porque o espaço se desenrola sempre em direcção à janela ou à porta. A linha de horizonte inscrita na tela projecta à distância o espaço como um percurso rumo à luz. Esta transmuta-se nos jogos subtis da sombra e apodera-se das formas, como as formas se apoderam do espaço. A tela adquire uma estruturação cenográfica compatível com a osmose e as passagens intermitentes da luz que abrem o interior à exterioridade. Estáticos, diante destas telas, contemplamos por um lado o efeito oceânico e solar destas vistas de exterior e, por outro, a intimidade do espaço interior das casas aberta à mobilidade do olhar subjectivo. Estamos perante uma visualidade pictórica que remete para diferentes pianos de proximidade física e de lonjura envolvente o que não cessa de ser um eco do silêncio dos lugares ancorados à lembrança. São imagens/tempo cujo enquadramento ritma este "balanceamento que o olho realiza perpetuamente entre uma sombra e uma luz"21. A pintura através da sua unidade espacial cava no seu interior uma ordem de fuga comandada por uma luz que se espalha no interior das casas e que se torna tangível no modo como a sombra esculturiza a opacidade dos objectos aí representados. A sombra não só oscila de leveza por sobre objectos, respeitando-lhes o contorno e as formas, como ainda vinca a sua volumetria acentuando a sua solidez de aspecto e de configuração.

L'ombre donne a voir et suscite ces formes instables qui ressemblent aux focons de neige des objets fractals. Elle est une structure dissipative qui autorise tous les flux et sauts formels, tous les objets incertains qui irréalisent l'image et intensifient les visibilités.22

Estes quadros induzem uma reflexividade vaga, mas não surgem associados ao sombrio crepuscular do expressionismo, nem as conotações literárias e fantásticas do surrealismo. Espectacularizam, sim, achegas, influências e afinidades que é necessário aqui citar, para compreender as tradições formais e pictóricas em que se insere a pintura de Manuel Amado. Trata-se de apurar a transformação estilista que ele opera na sua pintura, a partir da consistência de dados que de modo inteligente e conhecedor ele soube extrair de alguns planos pictóricos de Edward Hopper e de comprovar a atenção fascinada que ele sempre teve pela composição de perspectiva e as sombras projectadas dos quadros de Giorgio de Chirico. Esta relação com a linguagem pictórica de Hopper e de Chirico não diminui em nada a originalidade de Amado, antes o coloca com a sua pintura, como um caso singular, situado entre influências mais antigas e de peso, provenientes dos artistas italianos do Quattrocento e especialmente das perspectivas arquitectónicas traçadas pelo génio da escola de Piero ou de Laurana.
"As arquitecturas desempenharam um papel considerável na arte do Quattrocento porque elas se prestavam muito bem à aplicação de novos métodos de equilíbrio dos sistemas lineares"23. As vistas de Amado não são as mesmas de Hopper, mas aproximam-se sob vários aspectos: ["This is the source of the calm and also of the detachment in Hopper’s work. It is as if the things in his paintings were seen behind glass.”] "Os quadros de Hopper não transmitem apenas a impressão de tranquilidade, mas também de distância: as coisas apresentam-se ao observador como estando atrás de um vidro"24. As vistas pictóricas de Amado também se caracterizam por uma distanciação surpreendente.
O que é típico em Hopper é o facto de as janelas em lado nenhum deixarem olhar para o interior. Esta vista melancólica é ainda realçada pela cor do céu que domina uma grande parte do quadro.
O modo peculiar que Amado tem de lidar com o espaço e com os enquadramentos traz-nos à memória o quadro de Edward Hopper intitulado "Rooms by the Sea". Rigorosamente estas pinturas são imagens/tempo, como diria Deleuze, cujos vincos a luz faz e desfaz num jogo ininterrupto de aparato e de ilusão. A pintura de Manuel Amado, sem incorrer na metáfora, abre a porta ao ver.


1. F. Molder, Jorge Martins, Imprensa Nacional, Lisboa 1984.
2. M. Amado, Artes Plásticas, nº 12. Lisboa, 1991 (em entrevista).
3. F. Pessoa, Livro do Desassossego. Atica, Lisboa, 1982.
4. M. Amado, ob. cit.
5. O. Wilde, O declíneo da mentira. Vega, Lisboa, 1991.
6. M. Amado, Correspondência de Julho de 1992.
7. E. R. Oliveira, "As passagens intermitentes da luz na pintura de Manuel Amado”, in Artes Plásticas nº 18, 1992, p.21: "O pintor não se deixa contaminar pelos clichés da atualidade. Manuel Amado não confunde a visão com o visual. O visual tornou-se num valor comerciável numa forma caricata ditada por preceitos de moda e de circunstância”.
8. A. Lhote, Les invariants plastiques. Hermann, Paris, 1967.
9. P. Merleau, Résumés de cours. Gallimard/Tel, 1968.
10. M. Blanchot, O livro por vir. Relógio D’água, Lisboa, 1984.
11. J. Lichtenstein, Retour au desordre. Art press, nº 171, Paris, 1992.
12. M. Blanchot, ob. cit.
13. P. Poulet, L’espace proustien, Gallimard/Tel, Paris, 1992.
14. G. Vattimo, O fim da modernidade. Presença, Lisboa, 1987.
15. M. Dionísio, A paleta e o mundo, vol. 1. Europa-América, s.d. (citação)
16. O. Wilde, ob. cit.
17. J. Pomar, Da cegueira dos pintores. Imprensa Nacional, Lisboa, 1984.
18. Idem.
19. G. Hubermann, Devant l’image. Minuit, Paris, 1990 (cita Svetlana Alpers, " The Art of Describing”. The University of Chicago, 1983).
20. J. Aumont, L’oeil interminable. Seguier, 1989.
21. J. M. Floch, Les formes de l’empreinte. Pierre Fanlac, 1986.
22. C. Gluksmann, Tragique de l’ombre. Galilée, Paris, 1990.
23. P. Francastel, Peinture et société. Denoel/Gonthier, Paris, 1977.
24. R. Renne, Edward Hopper. Benedikt, Taschen, 1992.