Vasco Graça Moura Passagens, portas e recantos 1984

Texto referente à exposição:
Pintura de Manuel Amado - Galeria da Cooperativa Árvore, Porto, 1984


«No canto do quarto a sombra tocou
sua pequena flauta.» 
Sophia de Mello Breyner


Outros pintores cultivaram a ambiguidade como base do sistema de relações entre o espaço, a representação e a tela. Urna aposta de certas poéticas realistas, e entre elas a de Manuel Amado, consistirá hoje em violar as regras desse jogo magritteano e em restituir-nos como surpresa a reabilitação da relação tradicional entre aqueles termos, mostrando que a perspectiva continua a ser uma forma simbólica, como diria Panofsky, mesmo quando, ou sobretudo quando, o espaço é tratado em termos de natureza-morta, ou, e melhor quadraria aqui a expressão inglesa, de still life. Cerrada na sua tranquila transparência, esta pintura distancia-se de alusões literárias e de especulações metafísicas ou surrealizantes. E todavia, há nela um apelo à produção do inesperado, e também uma ressonância moral, uma ética do humano subtilmente (des)envolvida. Por um lado, ela propõe-nos um certo tipo de demonstração dos lugares íntimos pela redução à essencialidade despojada até ao osso da pura geometria; por outro lado, essa nudez é animizada com um halo de solidão complacente: quero dizer, que se compraz na sua fidelidade a um tecido entre melancolia e penumbra e severa alegria filtrada (ou pressentida?) da explosão de uma tarde quente lá fora. Como se, assim, o sol fosse nosso cá dentro, ou fosse o sol do nosso repouso.

E como se, de tudo, mais importassem a noção de passagem e a direcção do olhar fragmentário que a enquadra e reorganiza. Nessa quietude contemplativa, de luz tamisada e grave enunciação, a metáfora da passagem parece, com efeito, a mais adequada as modulações sobriamente harmonizadas de um real na aparência descontínuo.

Essa passagem encenada entre o nosso e o lá fora, não os opondo mas articulando-os, como peças de um discurso consequente de espaços e volumes, de proporções e intervalos, de medidas de luz e sombra, reintroduz uma formulação musical na representação, uma indicibilidade do instante, um sentido de tempo.

Dos recatos e dos recantos dessa música, que é, propriamente, de câmara, e dos meandros geométricos desse discurso plástico se gera uma tensão entre efémero e permanência e é por ela que o olhar se demora a segurar o pormenor de algumas linhas, por ela que se nos institui o privilégio de contemplar a transição, a suspensão furtiva, entre antes e depois, do momento captado na sua nudez de pedra e cal, de estuque e de reboco, de ferro e de vidro, de madeira e de esquadria. E de luz: de uma luz justa, sem atrocidades, rente à textura de cada superfície, forrando certa o fluir de cada atmosfera. Aqui se enlaçam uma poética do presente pela partilha e reunião do(s) espaço(s) e um olhar cenográfico que recupera, e chama a si, coisas tão diversas como certas cubicagens de alguns italianos do Quattrocento e uma irradiação de veladas presenças/ausências à maneira do cinema de um Straub. Da cave ao sótão, bachelardianamente, mas também do soalho à arca e à cómoda, da porta ao pátio, da janela à paisagem, da penumbra à luz, o espaço torna-se um búzio onde funciona o sussurro do dia; o recorte de uma varanda, a estridência de uma portada, de uma gelosia, de uma toalha suspensa, concentrada de sol, convidam-nos a viver-lhes lá dentro um sereno eco mínimo, quase conventual, das simplicidades engendradas pela alma do lugar. 

Pintura também do recolhimento meditativo, ela propõe-nos assim o próprio cerne do espaço urbano, o interior da casa, como área disponível para expansivas evocações e investimentos espirituais, para nela instalarmos a nossa fruição parcimoniosa do justo e do afeiçoamento artesanal em que a mão e a mente se interligam. Na obra de Manuel Amado somos constantemente confrontados com a expressão rigorosa deste eminente valor humano e cultural: o da dignidade de habitar.